O RONCO DO RONKÓ
Eva Bulcão – Psicóloga e Ekedji de Oxum
Sabe quando você sente um desejo muito forte em buscar algo novo? Algo que parece um chamado, uma sensação que você precisa parar tudo e atender? Porque na verdade vem de dentro de você. É como se você quisesse estar com você mesmo de uma forma que nem você consegue descrever. E de fato é algo muito subjetivo, mas quem já sentiu isso, não tem dúvidas…segue o chamado!
Pois bem! Isso aconteceu comigo neste ano. A única coisa que consegui definir foi a condição de que precisaria acontecer junto a pessoas em que pudesse confiar. E o Universo me presenteou com um irmão de alma. Foi com ele que decidi fazer essa viagem. Eu que sempre fui pragmática, que sempre quis respostas científicas, percebi que estava sendo chamada a um novo processo, dessa vez espiritual.
Daí viajei algumas vezes, mais de 500 Km, para encontrar comigo mesma. Não foi um processo solitário. Na verdade, foi um encontro com uma lógica familiar muito nova para mim. Um cuidado diferenciado, de um acolhimento sem julgamentos. Não se trata de uma realidade idealizada, mas de uma lógica onde os excluídos se entendem, se respeitam, se reconhecem.
A aproximação com essa nova forma de me enxergar e conviver com outras pessoas, oportunizou a coragem de superar medos tão primários…como dormir em um lugar sem grades e sem trancas. Eu estava verdadeiramente desarmada, pela primeira vez depois de 25 anos. Nessa ocasião eu fiz meu bori. Essa palavra vem do iorubá, bo significa “comer” e ori “cabeça”. Ou seja, “dar de comer à cabeça”, na perspectiva de harmonizar a sua relação com seu orixá, promovendo o bem estar físico, mental e espiritual.
Durante esse ritual percebi que algo me inquietava, mas não conseguia compreender o que era. Minha mente estava em ebulição, meu ori estava quente, mas não pelo ritual, e sim, porque antes, eu já me encontrava “de cabeça quente”, mas não havia percebido. A forma que muitas vezes vivemos não nos possibilita essas percepções, porque sempre estamos com pressa, sem tempo até para se notar. Passei três dias no barracão e ao final fomos para um rio onde pude compreender que o Candomblé é uma relação de gratidão e reconhecimento da força da natureza. É a possibilidade de união entre a nossa energia e a potência do desconhecido e invisível.
Horas depois peguei a estrada de volta à minha realidade da vida cotidiana, mas com a sensação de que havia virado uma chave. Ainda tinha dúvidas, porque não se aprende Candomblé apenas lendo, nele se vivência, se aprende na convivência, no fazer com os outros, em servir aos outros, porque assim, você também se sentirá servido. Eu entendi porque todos trabalham num terreiro: lá é sua casa. Eu realmente me senti em casa. Por isso, sai com a nítida sensação de que retornaria em breve!
Meses depois retornei para a minha iniciação. Esse processo não foi definido por mim. Fui escolhida para exercer uma função no terreiro, dada por meio de um Orixá. Esse cargo é uma responsabilidade com o terreiro e com a minha Mãe de Santo, uma honra que me orgulhou muito. Entretanto, não se trata de um status, e sim, de uma atribuição espiritual, que para exercê-la é preciso nascer para ela. E foi com o intuito de descrever essa experiência que resolvi escrever esse conto.
Eu tenho poucos dias de nascida no Candomblé. Esse processo chama-se ronkó. Trata-se de um espaço para nos conectarmos com o sagrado, onde ficamos reclusos por vários dias, como se estivéssemos no útero de nossa mãe.
Nesses dias cortamos contato com o mundo externo. São apenas os iniciados e mais nada. Nesse espaço não há janelas, nem camas, nem qualquer móvel. Somos apenas irmãos, que juntos nesse barco, iremos conviver na mais profunda simplicidade e cooperação.
Tudo é muito surpreendente, principalmente, o fundamento de se desligar da vida que tínhamos. A simplicidade, o silêncio e o convívio com pessoas que nunca fizeram parte da sua vida, deixa claro que ali um depende do outro. O que cada um faz reverbera na energia do outro. Portanto, ser irmão de santo é cuidar, compreender e respeitar.
Para mim o maior desafio foi, mais uma vez, o meu silêncio. No início o nosso barulho interior tira o nosso sono. E aos poucos, com todos os ensinamentos que vamos vivenciando, a paz vai sendo conquistada. Mas o primeiro passo para nos apaziguar é perceber o que pensamos, e a cada dia ir compreendendo porque esses pensamentos tiram nosso sono. É como se fossem enigmas que ali, com tempo e calma, fossemos decifrando.
Tive a sorte de ter um irmão que a vida me presenteou, junto comigo no ronkó. Nós nos ajudamos muito, porém ele contribuiu muito com a insônia que senti nos primeiros dias: roncava muito alto. E isso também foi uma superação, porque nenhuma realidade é perfeita. Se por um lado, ele tirava meu sono, por outro, éramos a escuta um do outro. Sem contar os sorrisos que trocamos diante das dificuldades e das incertezas que por vezes, nos tomavam de assalto.
Éramos quatro nesse espaço, bem pequeno para pessoas grandes, mas acabou se tornando um templo de escutas, emoções, conflitos e acolhimentos. Ao final do período, ele parecia bem maior do que no início. Foi um desafio que se tornou uma conquista. Talvez, porque ali não carregávamos absolutamente nenhum bem, nem status. Estávamos desnudados de qualquer posse, não adiantava lembrar, ali só nos restava a alma.
O dia da feitura de santo foi o mais incrível. Uma paz tão grande me tomou e nesse momento eu pensei que tudo daria certo. Era uma certeza tão grande, uma alegria interior sem explicação. Meus pensamentos já estavam mais calmos e já conseguia me comunicar com o meu Orixá – Oxóssi, de uma maneira tão fluída… sabia que não estava mais sozinha. Me refiro a uma solidão anterior, que me acompanhava há anos.
No penúltimo dia fomos novamente ao rio, o mesmo que conheci quando fiz o meu bori. Ele não era mais o mesmo, nem eu. Mas o sentimento foi novamente de paz e bem estar. Foi o único dia que saímos do terreiro. Parecia que tudo tinha mais cor, mais vida, e nós também!
O dia da nossa saída terminaria com uma festa, e assim aconteceu! Uma música forte, com batidas marcantes no corpo e na mente, inesquecível! Os atabaques, as cantigas e o barracão tomado por uma energia contagiante, tanto que não me contive e dancei sem receios, completamente envolvida por uma alegria e serenidade, que mesmo não sabendo as danças de cada orixá, arrisquei os passos que aprendi naquele momento.
No outro dia acordei um pouco mexida, mas consegui me restabelecer e pegar a estrada de volta para casa. Com um sorriso no rosto e uma tranquilidade de que nada me abalaria facilmente, nem mesmo os roncos do meu irmão (rs). Agora o ronco era outro, dos tambores, anunciando que eu acabava de nascer para uma nova jornada!









