Mulheres em Movimento #1: Ivannide Santa Bárbara

O bloco tá na rua e, sem dúvida, não haveria melhor Rainha pra inspirar a nossa bateria, é um abre alas em grande estilo! O que também aumenta a expectativa e a responsabilidade sobre o que vai ser dito sobre essa Mulher Movimento: filha de Oyá, mimo d´Oxum e protegida de Azansú. 

Então, que ela mesma se apresente: “filha biológica de uma mulher negra, chamada Matilde, trabalhadora doméstica, que por conta da pobreza extrema e para salvar a mim e ao meu irmão gêmeo da fome, nos deu em adoção com um mês de vida a duas famílias de poucas posses. Infelizmente, meu irmão não sobreviveu. Esta sobrevivente que vos fala teve a sorte de ser adotada por um casal pernambucano que conseguiu garantir minha sobrevivência. Orfã de pai aos 10 anos, comecei a trabalhar muito cedo, como era comum naquela época, na lavagem de roupa: minha mãe lavava roupas de adulto e eu as infantis, de modo que, aos 11 anos de idade eu já era uma exímia lavadeira e passadeira. Além de lavar roupas, até os 13 anos, eu também ajudava minha mãe a vender mingau no antigo Posto Shell do Marajó. Minha recompensa eram revistas compradas na banca do próprio posto”.

Essa apresentação foi feita através do texto “Memórias de uma Doutoranda Honoris Causa”, lido por ela durante a Cerimônia de seu Doutoramento na Universidade Estadual de Feira de Santana. E, sobre o título, ela dispara: “preciso dizer-lhes que, seja por não usar de falsa modéstia, seja por uma questão política, me considero merecedora da honraria, visto que, tenho consciência de que essa proposta só foi considerada pela Universidade porque sou o que a luta coletiva fez de mim. Aos moldes da filosofia bantu, de fato, eu sou porque nós somos”.

A luta coletiva, a que se refere a protagonista que inaugura esse Editorial, tem duas dimensões inseparáveis na sociedade brasileira: raça e classe. Nessa batalha secular, o lado em que dona Ivannide sempre esteve e representa é aquele que combate o racismo étnico negro, bem como, todas as formas de discriminação, e que se mantém ativo em favor de pessoas trabalhadoras diante das opressões e disparidades resultantes do sistema capitalista.

Em algumas oportunidades estive com ela, liderança altiva de presença luminosa e língua afiada, a exemplo do ato público ocorrido na Câmara de Vereadore[a]s de Feira de Santana em favor da memória de Mãe Bernadete, em 29 de agosto de 2023. Era uma sessão ordinária, mas a mobilização social criou condições para que fosse interrompida e que fossem apresentadas suas demandas: agitação, palavras e faixas contestadoras…de repente, infalível, ela aparece! 

Caminhando graciosa e lentamente com a ajuda de uma bengala ortopédica, cabelos brancos revelando a autoridade de quem viu e viveu muita coisa, foi adentrando aquele ambiente lotado e mal projetado, e ao mesmo Tempo em que as pessoas se deslocavam em sua direção para cumprimentá-la afetuosamente, havia a compreensão consensual de que ela estava ali para falar e, então, abriu-se um corredor entre o povo para que ela pudesse passar.

E quem estava ali queria e/ou precisava ouvir. E ouviu, em 7´05s, um pronunciamento direto e duro, como tem que ser contra o racismo, seja quando se manifesta nas costumeiras chacinas contra a população negra ou quando promove mortes simbólicas às memórias positivas desse grupo social, a exemplo do boicote realizado pelo edis da casa à votação do projeto que concederia ao músico Gilsan Santana a outorga da Medalha Zumbi dos Palmares.

 

Se fosse uma luta de boxe era um nocaute incontestável. Com o dedo indicador suspenso, apesar da voz falhando, ela se dirigiu repreensiva aos vereadores presentes: “eu gostaria aqui agora, agora, de que as pessoas que são contra ou que foram contra a indicação que o companheiro Silvio [PT] colocou no nome de Gilsan do reggae, levantasse a mão apontando alguma coisa que desabone a conduta desse irmão”. O que se ouviu como resposta foi o silêncio envergonhado diante da incapacidade de explicar o inexplicável.

É o silêncio dos ratos, amedrontados, quando são afrontados por uma figura maior do que eles. À propósito, está na hora da população feirense promover a dedetização da Câmara de Vereadore[a]s, tem muito rato lá – rato calunga, aquele doméstico, desordeiro, que atua silenciosamente quando não há movimento reativo à sua presença repugnante: violando as embalagens, se alimenta dos grãos, defeca e infecta o local, e sempre volta na próxima oportunidade até que seja caçado. Sejamos, então, nas eleições de 2024 em Feira de Santana, caçadora[e]s de ratos!

 

Ainda sobre seu pronunciamento na Câmara, rarissimamente sintético, afirmou: “nós pessoas negras temos consciência de que um título não significa nada na modificação concreta e real da nossa vida, mas significa para nossos predecessores, ao invés de ter somente como imagem, ter somente no imaginário, negros e negras nos presídios ou com as mãos estendidas pedindo esmola. A gente precisa ter negros e negras que possam ser reconhecidos na história como pessoas que contribuíram na cultura, na agricultura, aqui na Câmara de Vereadores, para que estas crianças negras possam crescer com referência positiva, portanto, é uma crueldade sem tamanho, é uma ignorância sem tamanho”.

Seguindo essa diretriz como um farol, nos propusemos a realizar esse Editorial temático, para celebrar e partilhar histórias de mulheres que, como ela,  resistem e subvertem a lógica social ainda dominante. Para que essas histórias inspirem outras mulheres em suas caminhadas e para que, quem sabe, possa instrumentalizar os homens tornando-os nossos aliados na construção de uma sociedade menos desigual e injusta.

A protagonista #1 do Mulheres em Movimento é aquela que sempre pede licença à sua ancestralidade antes de se pronunciar, vestindo-a como armadura, e repetiu essa ritualística em seu emblemático discurso na Câmara – ao qual já se fez referência. Ali, com a licença à Exu, ela pediu que ele falasse literalmente através de sua boca. Aqui, peço também à minha ancestralidade que ilumine essas palavras, entalhadas a partir de tantos eventos públicos e memórias pessoais, ecoando-as, porque além de ser a Jornalista que coordena essa atividade, sou muito e também uma indisfarçável admiradora dessa grandiosa Ivannide Santa Bárbara. 

 

 

Crédito: Paloma Santana