A abertura da II Edição do editorial temático Mulheres em Movimento segue o mesmo fluxo da Edição inaugural: a primeira das quatro protagonistas é uma mulher negra e, assim como, Ivannide Santa Bárbara, altamente competente e comprometida com as questões étnico raciais negras, com considerável experiência nas lutas políticas em favor de trabalhadora[e]s. No caso da Protagonista de hoje, além das lutas com o Sindicato de Trabalhadora[e]s Rurais, atuou também como Conselheira Tutelar durante dois mandatos.
Uma curiosidade é que ambas são petistas e referências para as comunidades das quais são oriundas e estão vinculadas. Mirian Jorge de Almeida é natural da Comunidade do Gavião, uma das onze Comunidades Quilombolas do município de Antônio Cardoso já certificadas pela Fundação Palmares.
“Lavradora, mãe solo de dois meninos, evangélica, apaixonada por livros”, foi integrante do MOJAC [Movimento de Jovens de Antônio Cardoso] e, apesar de não ter cursado o ensino superior, é sem sombra de dúvidas o nome mais apropriado para atuar como Secretária de Promoção da Igualdade Racial, dos Povos Tradicionais e Mulheres do município.
Antes de dar segmento à descrição, gostaria de confessar que, talvez, este seja o texto mais complexo que produzi para este projeto, porque muitos aspectos da história de vida de Mirian atravessam pontos da minha própria história. E, considerando que um texto jornalístico é bastante diferente daquilo que se escreve em diários de memórias, precisei ser ainda mais criteriosa com o tipo de abordagem realizada.
Mas, apesar desse esforço conceitual, existem fatos que não podem passar batido e, dos muitos que nos conecta, não posso deixar de destacar que Antônio Cardoso é a cidade natal de meus ancestrais diretos – avós paterna e materna, mãe, pai, avô paterno – inclusive, meu avô paterno foi o primeiro Prefeito local, quando houve a emancipação política do município.
Esses detalhes são trazidos à tona pra dizer que, em alguma medida, conheço a dinâmica do lugar, sobretudo, no que diz respeito ao histórico processo de invisibilização das populações negras e, consequentemente, os desafios que Mirian deve enfrentar enquanto Secretária desta pasta criada especialmente pela atual gestão municipal.
Quando os assuntos são povos tradicionais e Comunidades Quilombolas locais, normalmente, ela é convidada a falar e, entre seus muitos discursos sobre os temas, destaca-se a entrevista que concedeu ao Jornal Correio da Bahia [2012], onde abordou os conceitos de identidades e ancestralidade negras, em uma matéria que evidenciou a posição de Antônio Cardoso como o município com maior população negra autodeclarada do Brasil, de acordo com o Censo [2010].
Mesmo tendo alcançado esse lugar no ranking nacional, as populações tradicionais cardosenses continuam sub-representadas e, em um esforço para acessibilizar e garantir direitos à essas populações historicamente vulnerabilizadas, Mirian foi mais uma vez convocada a trabalhar pelo coletivo.
Na entrevista que nos concedeu, à noite, pós expediente, e que ocorreu na sede do Conselho Tutelar cardosense e durou trinta e nove minutos, ela falou sobre sua trajetória de vida e como, desde criança, já despontava como uma liderança. Das muitas referências citadas durante a conversa repetia sempre os ensinamentos de sua mãe: “ela sempre me disse que eu nunca devia revidar, sempre reagir”.
A menina que apanhava na escola, depois de muitas vezes andar cerca de 7km para chegar nela, associada por colegas à figura de um “tição apagado” – por ser negra retinta – alcançou o posto de Secretária de governo. Essa é a metamorfose pela qual passou essa mulher extraordinária, cuja conversa é capaz de envolver porque tem substância e afeto positivo, porque nos fala olhando nos olhos e com firmeza maleável. Por fazer da sua vida uma constante batalha pela emancipação de seu povo, Mirian se constitui literalmente como uma mulher em movimento.