Com objetivo de dificultar o rastreamento de verbas desviadas do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), integrantes da organização criminosa desarticulada pela Operação Overclean usaram peixarias para sacar altas quantias de dinheiro em espécie, aponta o inquérito elaborado por policiais federais responsáveis pelo cerco ao esquema. As investigações revelaram transferências bancárias que somaram R$ 6,78 milhões feitas para empresas que, supostamente, comercializam peixe e frutos do mar em Salvador pelo grupo empresarial ligado aos irmãos Alex e Fábio Parente, suspeitos de liderarem o esquema. Todos os repasses ocorreram entre janeiro de 2022 e abril de 2024, através de 119 transações realizadas em 97 datas distintas. “Essas empresas devolvem os valores à organização criminosa em espécie, após descontarem uma pequena taxa de serviço. Esse dinheiro vivo, então, é utilizado para realizar os pagamentos de propinas diretamente a servidores públicos, garantindo a continuidade de contratos fraudulentos e a manutenção dos privilégios ilícitos obtidos”, destacou o relatório da Overclean, ao qual a Metropolítica teve acesso.
Pulga na orelha
Ao receber os dados obtidos através da quebra de sigilos bancário e fiscal sobre a movimentação financeira das empresas dos irmãos Parente, a PF desconfiou do alto volume de transferências para as três peixarias citadas no inquérito: Osmerval Comércio de Alimentos, AF Tavares e a de nome mais curioso, Corno do Camarão. Ao pedir apoio da Receita Federal, os investigadores da Overclean descobriram que nãos existiam quaisquer notas fiscais eletrônicas ou notas de serviço emitidas pelas peixarias nos municípios onde foram cumpridos mandados de prisão de busca e apreensão: Salvador, Feira de Santana, Vitória da Conquista, Camaçari, Itabuna e Aracaju. A Receita acrescentou ainda que não era possível comprovar a existência de transações comerciais envolvendo tais empresas.
Rede de arrasto
Os achados, salientou a PF no inquérito, corroboraram as suspeitas de que as três empresas investigadas foram abastecidas com recursos desviados de contratos junto a prefeituras de quatro estados, sobretudo a Bahia, referentes a obras bancadas pelo Dnocs por meio de emendas parlamentares. Dos cerca de R$ 6,78 milhões, R$ 2,93 milhões e R$ 2,89 milhões foram parar nas contas da peixaria Corno do Camarão e da Osmerval Comércio de Alimentos, respectivamente. Outros R$ 950 mil tiveram a AF Tavares Alimentos como destinatária. A primeira tem como endereço um ponto comercial na Rua Gonçalo Coelho, Liberdade. A segunda ocupa um box no Mercado de Itapuã. Já a terceira é situada no Mercado do Peixe de Água de Meninos, na Cidade Baixa.
Ficha corrida
Os sócios das peixarias também chamaram a atenção dos policiais federais, além da coincidência de nomes. A Osmerval Comércio de Alimentos, que também já ostentou antes o nome fantasia de Corno do Camarão, pertenceu a Osmerval de Freitas Silva, que aparece no cadastro da Previdência Social como funcionário de uma unidade do Redemix na Pituba. Hoje está em nome de Caíque Santos Oliveira, que mantém vínculo empregatício com a W.A.F Empreendimentos, empresa de construção civil sediada em Salinas da Margarida e que possui contratos com diversas prefeituras do baixo-sul do estado. Santos Oliveira aparece ainda como beneficiário de diversos programas sociais do governo, como o Auxílio Emergencial e o Novo Bolsa Família. Por sua vez, a A F Tavares tem no quadro societário Elisson Santos Santana, ex-funcionário da Osmerval, e Adriano Santos Tavares, que cumpriu pena por roubo a mão armada na Colonia Penal de Simões Filho.
Dono do peixe
Todas as empresas, contudo, são controladas pelo comerciante Luísa Henrique Cruz Barreto, dono da atual peixaria Corno do Camarão. É ele quem aparece no relatório, sob o codinome Lampião, em diversos diálogos interceptados pela Operação Overclean combinando entrega de dinheiro em espécie para um dos operadores de Alex e Fábio Parente no esquema, Clebson Cruz, também alvo de prisão preventiva por envolvimento no esquema. Em troca de mensagens de áudio efetuadas em 11 de abril deste ano, Clebson pergunta: “Lampião, me mande seu localizador aí, meu velho, só pra eu ver onde é que eu entro aqui, que eu já estou aqui pertinho”. O comerciante, então, responde: “Na Vila Laura, homem, aqui onde você teve naquele dia”. Na mesmo data, a peixaria recebeu um repasse de R$ 200 mil da FAP Participações, comandada pelos líderes do esquema.
Olha lá!
Foram descobertas diversas transferências realizadas para as três peixarias nos dias em que ocorreram outras conversas interceptadas pela PF entre Clebson Cruz e o comerciante. Em 17 de junho de 2022, Lampião chega a manifestar, por meio de mensagem de áudio, preocupação com os emissários enviados pelo operador e cita pela primeira vez a palavra “dinheiro”: “Vem cá macho, quem é esse cabra que você vai mandar pra cá? Vê quem é que você vai mandar pra cá, viu? Eu sou meio cismado viu, véi? Tá mandando pra cá, pra buscar dinheiro aqui em casa, pra não marcar a casa aqui. Vê quem é que você vai mandar?”. Na mesma data, ele compartilha com Clebson Cruza a foto de um imóvel de dois andares, onde aparece uma Fiorino branca em seu nome estacionada em frente.
Ao pé do ouvido
Conversas captadas este ano por uma escuta instalada pelos investigadores da operação na Range Rover dos irmãos Parente comprovam o conhecimento de ambos sobre uso de peixarias para operar dinheiro em espécie desviado do Dnocs. O áudio mostra, primeiro, o teor de uma conversa telefônica entre Fábio e um interlocutor não identificado, na qual ele diz: “E aí, filho? Aquela razão social que você me deu do Pix apareceu outro nome…Costa Pescado. Pode fazer? Pode? Beleza, tô fazendo”. Na sequência, Alex pergunta: “Ô, Fábio, ele ganha o quê com isso aí?”. “Ele tá ganhando 1% agora, né! Antes ele ganhava assim.Ele resolvia o problema, né! Que ele tinha que ir pra conta depositar. Porque o dinheiro não é só dele, entendeu? Esse dinheiro que ele pega não é dele, é dos outros, é do pai dele que mexe, é do tio. Enfim, dos parentes dele lá”, responde Fábio.
Isca mordida
Fontes com acesso a detalhes da Overclean disseram à coluna que, por utilizarem grandes volumes de dinheiro em espécie na compra de peixes e frutos do mar diretamente da mão de pequenos e médios fornecedores, os líderes do esquema achavam que saques fracionados por parte de peixarias não iriam despertar tanta desconfiança. “O erro deles foi que não há nada que justifique os repasses efetuados pelas empresas dos líderes do esquema, nem uma nota fiscal só”, acrescentou um dos investigadores do esquema. Além da FAP Participações, foram descobertas transferências de altos valores pela BRA Teles, empresa em nome de um vigilante que também foi utilizada para movimentar propina.
Fonte: Metro1