Crítico da Reforma Tributária, o ex-secretário de Fazenda de São Paulo Felipe Salto afirma que a nova versão apresentada pelo senador Eduardo Braga (MDB-AM) piora o texto aprovado pela Câmara em julho e está distante da proposta original, que representava uma evolução em relação ao sistema atual.
Salto destaca dois novos problemas. O primeiro é a mudança do prazo para fim dos benefícios fiscais de ICMS durante o período de transição. O segundo é o aumento dos recursos federais aos estados para compensar o fim da guerra fiscal.
A reforma prevê a transferência de R$ 160 bilhões para um fundo de compensação para bancar a redução dos benefícios fiscais no período de transição, de 2029 a 2032. Os estados também vão receber, a partir de 2033, o dinheiro do fundo regional, que terá aportes anuais que chegam a R$ 60 bilhões de 2043 em diante.
“Não são compensações. São dois enormes fundos que foram criados para dilapidar a União, sem contrapartida em termos de melhoria do sistema tributário”, afirma Salto, que atualmente é economista-chefe e sócio da corretora Warren Rena.
O economista diz que o Senado também deveria acabar com a ideia de ter um Comitê Gestor para administrar o tributo dos estados e municípios, além de antecipar e encurtar a transição para o fim do ICMS.
“Todos esses pontos são essenciais, e a minha esperança era que o Senado mexesse, todos eles pioraram”, afirma.
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Folha – A Reforma Tributária vai implantar um sistema que funciona em mais de 170 países. Por que o senhor avalia que isso não vai funcionar no Brasil?
Felipe Salto – Quando a gente fala que a PEC 45 levaria o Brasil a se equiparar ao que é praticado no resto do mundo, é uma meia-verdade. A PEC original propunha um IVA [Imposto sobre Valor Agregado] nacional. Era uma evolução em relação ao que a gente tem hoje com o ICMS. Agora, o texto que foi modificado pelo Senado, primeiro, está muito distante do que era a proposta original e, segundo, pode levar a um sistema pior que o atual.
O Brasil tem um IVA também, chamado ICMS. O problema é que o ICMS tem alguns entraves, como crédito físico, e não financeiro, ou seja, os consumidores intermediários não podem se acreditar daquilo que eles consomem de serviços no processo produtivo. A tributação é majoritariamente na origem. Os incentivos fiscais não têm nenhum controle, o que leva a uma exacerbação desses incentivos que redunda na guerra fiscal.
O fim da guerra fiscal e a migração para o destino não vão acontecer. ‘Ah, mas está previsto para 2033…’ Da forma como está, uma transição concentrada de 2029 a 2032, em que as alíquotas do ICMS e do ISS vão diminuindo à razão de 10%, quando chegar em dezembro de 2032, as alíquotas vão corresponder ainda a 60% das atuais. Quem acredita que vai passar para zero só porque virou o ano-calendário?
Folha – Os estados teriam algum incentivo para continuar com o ICMS?
Felipe Salto – Total. Ainda mais agora que, no texto novo do Senado, aquela redução dos benefícios, que aconteceria proporcionalmente à redução das alíquotas, 10% ao ano a partir de 2029, não vai mais acontecer. Você vai ter os fundos, não só o de desenvolvimento regional que foi ampliado, mas o de compensação dos incentivos também, com um volume de recurso enorme que já pode ser distribuído a partir de 2029, mas os benefícios fiscais só acabam em Folha – Mas o fim do ICMS estará previsto na Constituição.
Felipe Salto – Mudar a Constituição não é fácil, mas se você tiver a pressão da maioria dos estados, tiver a pressão dos setores empresariais que dependem e estão pendurados nesses incentivos, o que vai acontecer? Provavelmente vai ter uma PEC para prolongar os prazos.
Se fosse mesmo para ter a transição para o destino, ela tinha que acontecer num horizonte de curto prazo. O contra-argumento a isso é que custaria caro, porque os estados não iam querer abandonar os incentivos em três ou quatro anos. Mas não é exatamente isso que estão fazendo? Inclusive agora aumentando o Fundo de Desenvolvimento Regional.
O custo já está sendo pago, mas o benefício não está vindo. Ele está sendo prometido para 2033. Só que a fatura vai ser paga antes na sua maior parte.
O que eu posso esperar disso? Que algum gênio da raça lá em 2031 ou início de 2032 vai propor a prorrogação de prazo. É óbvio. Imagina o [Ronaldo] Caiado ou quem quer que seja o governador de Goiás, para pegar o exemplo de um estado que faz muita guerra fiscal, ou mesmo Santa Catarina. Vai chegar e dizer, olha gente, estamos aqui com R$ 300 bilhões de incentivos. Como vamos reduzir isso da noite para o dia?
Folha -Se esse cenário de reversão de parte da reforma não se confirmar, o Brasil terá um bom sistema tributário com a aprovação da PEC 45?
Felipe Salto – Não, porque aí vem a minha outra crítica, que é a centralização no Comitê Gestor [da arrecadação do IBS, novo tributo para estados e municípios].
A minha proposta é que cada estado gerenciasse o seu IBS. Hoje o ICMS é repartido com os municípios. São Paulo faz a partilha do ICMS com 645 municípios, não dá problema nenhum. Por que eu preciso de um órgão central para a partilha do IBS?
Quando digo que ele vai garantir automaticamente a devolução do crédito, corro o risco de erodir a arrecadação dos estados. Hoje o crédito que está embutido no ICMS já é devolvido e o critério é físico. Muda para financeiro, então a devolução tende a aumentar. O crédito acumulado, nas hipóteses de devolução de exportação e tal, vai ser devolvido automaticamente também? Os estados têm de se preparar para isso.
Um argumento forte para ter o Comitê Gestor é que vamos migrar toda a tributação para o destino. Quando São Paulo vender para o Ceará, São Paulo vai ter que transferir a receita para o destino. Aí vai haver um risco de apropriação indébita da receita. Se o argumento é esse, explicita na PEC que apropriação é crime de responsabilidade fiscal. Não precisa de um Comitê Gestor para resolver isso.
Eu faria uma mudança na legislação do ICMS para migrar para o destino, em quatro anos. Ah, mas vai custar caro. Bom, a PEC já está custando caro. Se é para pagar esse custo enorme, que é um risco fiscal para a União, melhor fazer uma coisa mais rápida, que preservasse aquilo que o sistema atual tem de bom e corrigisse as inequidades.
Outra opção é uma que o governador Tarcísio Freitas deu e que não foi acatada. A câmara de compensação, que é um modelo que foi desenvolvido pelos auditores fiscais aqui de São Paulo.
Folha – Não seria importante resolver também a questão dos tributos federais, IPI e PIS/Cofins?
Felipe Salto – A junção do PIS/Cofins é crível. Vários governos tentaram fazer, já estava amadurecida e é bom, porque simplifica de fato e vai começar em 2026 e em 2027 os tributos antigos vão sumir. É diferente do que está sendo prometido para o ICMS.
O problema que eu vejo nessa primeira parte federal é que o relator do Senado inventou uma coisa nova. Você acaba com o IPI e inventa um imposto novo para proteger a Zona Franca. Acaba tornando mais complexo o sistema. A parte boa da reforma é a junção do PIS e da Cofins. A única parte boa, eu diria.
Folha – Há outros pontos que poderiam melhorar na proposta, além do comitê gestor e dos benefícios fiscais?
Felipe Salto – Uma terceira coisa é mudar essa lógica de compensações, que na verdade não são compensações. São dois enormes fundos que foram criados para dilapidar a União, sem contrapartida em termos de melhoria do sistema tributário. Você vai começar a ter aporte nesse fundo de compensação já em 2025. Mas se o benefício acaba só em 2033, por que eu estou colocando R$ 8 bilhões em 2025?
O cálculo da alíquota é outra coisa que me preocupa. Temos as exceções. Outra questão é a transição, que teria que começar muito antes e acabar muito mais cedo. Enfim, todos esses pontos que são essenciais, e a minha esperança era que o Senado mexesse, todos eles pioraram.
Essa história de que ninguém sai perdendo com a reforma tributária é uma balela. Para ninguém sair perdendo, acontece isso. Você incorpora tantas exceções, penduricalhos e coisas específicas, para setores, estados, municípios, que virou um monstrengo, como eu tenho chamado.RAIO-X | FELIPE SALTO, 36
Economista-Chefe e Sócio da corretora Warren Rena. Ex-Secretário da Fazenda e Planejamento do estado de São Paulo (2022), foi o primeiro Diretor-Executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal